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A venda de ascendente a descendente por terceiros é causa de nulidade?

16 de setembro de 2016

Trazemos aqui uma singela contribuição à Coluna Direito Civil Atual, da Rede de Direito Civil Contemporâneo, e coordenada pelos Ministros Luís Felipe Salomão, Antonio Carlos Ferreira e Humberto Martins, ao lado dos Professores Ignacio Poveda, Otávio Luiz Rodrigues Junior, Larissa Leal, Torquato Castro Junior, Maria Vital, José Antonio Peres Gediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva; a quem penhoradamente agradecemos pela oportunidade de contribuir com este espaço privilegiado de debate sobre o direito.

Sabe-se que o artigo 496 do Código Civil de 2002 reputa anulável a venda de ascendente a descendente[1] realizada sem o consentimento do cônjuge e o assentimento dos demais descendentes. O consentimento do cônjuge é dispensado se o regime de bens adotado corresponde ao da separação obrigatória. O Código Civil de 1916 continha preceito similar em seu artigo 1.132[2]. Alude-se a necessidade de consentimento para a alienação, caso o bem integre o patrimônio comum do casal; daí a necessidade de consenso, acordo de vontades, consentimento.

Entretanto, se o bem pertence exclusivamente ao vendedor, vez que a opção pela alienação cabe apenas ao titular do direito, mister se faz o assentimento, ou seja, a concordância dos outros. Tal restrição ao direito de dispor dos bens não é estranha a tradição jurídica luso-brasileira, como se pode verificar do Título 12 do Livro IV das Ordenações Filipinas: “Por evitarmos muitos enganos e demandas, que se causam e podem causar das vendas, que algumas pessoas fazem a seus filhos, ou netos, ou outros descendentes, determinamos que ninguém faça venda alguma a seu filho, ou neto, nem a outro descendente”.[3]

Segundo Natal Nader, tal proibição é mais antiga: existe desde as Ordenações Manuelinas. Assevera, também, que a vedação dá-se no intuito de evitar que se oculte uma doação inoficiosa de ascendente a certo descendente sob as vestes do contrato de compra e venda, em prejuízo dos demais. Pois, a doação de ascendente a descendente é considerada antecipação da herança (art. 544, CC); o que obriga o descendente beneficiado pela doação a levar a coisa recebida por liberalidade a colação (art. 2.002, CC), para igualar as legítimas dos herdeiros.

Em relação a coisa vendida, por outro lado, tal dever não se impõe.[4] Para Pontes de Miranda, o objetivo da regra é “o de pré-excluir enganos e demandas entre ascendentes e descendentes, o que estava explícito nas Ordenações Filipinas, Livro IV, Título 12, mais, portanto, do que evitar dissimulação de doações. Não se falou em legítimas”.[5] O Código Civil de 2002, portanto, impõe a sanção de anulabilidade para a conduta que, diretamente, infringe tal norma cogente, consistente na conclusão de contrato de compra e venda de ascendente a descendente sem o assentimento dos demais descendentes e o consentimento do cônjuge.

Parcela considerável da doutrina e da jurisprudência, contudo, titubeia quanto a imposição de idêntica sanção em se verificando a realização de contrato de compra de ascendente a descendente por interposta pessoa. Neste caso, há quem pugne pela imposição da sanção de nulidade do ato, invocando a simulação ou a fraude a lei. É interessante notar certa inversão, levando-se em consideração entendimento já superado pelo Supremo Tribunal Federal.

Por mais de cinquenta anos, sob a vigência do Código Civil de 1916, o STF manteve entendimento incorreto de que na venda direta existiria nulidade com prescrição de vinte anos, mas na venda realizada por interposta pessoa ocorreria anulabilidade, pois seria um ato simulado com prescrição de quatro anos (Súmula 152).

Tal equívoco de interpretar a venda por interposta pessoa como simulação já havia sido eliminado com a adoção do entendimento pela nulidade do ato praticado por interposta pessoa, em razão da fraude a lei (Súmula 494).

O legislador, na tentativa de igualar o tratamento dispensado a fraude a lei ao da simulação, recaiu em equívoco ao sancionar as duas situações com a nulidade (art. 166, CC).

Ora, infringe norma jurídica cogente aquele que faz o que ela proíbe ou não faz aquilo que ela impõe. Tal infração pode ocorrer direta ou indiretamente. Dá-se diretamente, “quando sem rebuços ou artifícios, se infringe norma jurídica cogente, proibitiva ou impositiva, fazendo ou obtendo resultado que a lei proíbe, ou não fazendo ou evitando fim que a lei impõe (art. 166, VII)”.[6]

Tal ofensa, contudo, pode ser indireta ou oblíqua. A doutrina geralmente denomina tal ofensa indireta de fraude a lei, cuja caracterização exige “que alguém realize um ato invocando o amparo de determinada norma, chamada lei de cobertura. A particularidade está em que, ao assim agir, labora o sujeito de direito com o propósito de concretizar um fim ou escopo vedado por outra norma legal, sendo esta de colorido imperativo”.[7]

Entretanto, seguindo o magistério de Pontes de Miranda, parece-nos inadequado falar em fraude a lei como infração indireta a norma jurídica. É preferível o emprego da expressão infração indireta a norma jurídica, para referir apenas a conduta intencional de violar indiretamente a lei; já que talanimus não é elemento caracterizador da infração indireta.

É de se reconhecer que consiste em uma expressão de uso generalizado, adotado inclusive pelo Código Civil; o que nos inibe de recusá-la. A venda de ascendente a descendente por interposta pessoa constitui, portanto, infração indireta a norma jurídica; figura que não se confunde com a simulação. Pois, na simulação, “há um descompasso entre a vontade real e a declarada".

Por sua vez, na fraude à lei, ao se praticar o ato em tese permitido, as partes pretendem os efeitos deste, embora tenham, para esse fim, burlado a incidência de uma norma injuntiva”.[8] Na fraude à lei, o autor quer o que realmente aparece. Quando o pai transmite, declarando vender, um bem a terceiro (interposta pessoa) e esse o “vende” ao filho, obtém o pai o resultado que a lei proibe para a venda ao filho sem o assentimento dos demais filhos e o consentimento da esposa. Na fraude à lei, portanto, não há aparência, mas atos verdadeiros.

Todavia, parece-nos um disparate considerar que a ofensa a norma que proibe a venda de ascendente a descendente possa suportar sanções diversas, a depender da caracterização da ofensa como direta (sanção de anulabilidade) ou indireta (sanção de nulidade). Ora, o direito pode ser caracterizado como um sistema de comunicação, que “produz e reproduz o sentido” a partir de suas próprias temáticas, de seus elementos e instituições.[9] Apesar de composto por regras instituídas em momentos variados, tal incongruência do sistema jurídico é superada pelo princípio da coerência, “sem o qual a aplicação da lei será imperfeita.

Um princípio novo, que modifique substancialmente a perspectiva das leis envelhecidas, altera fundamentalmente o espírito de todo o sistema, e irradia a luz de seu novo sentido a todo o conjunto”.[10] Neste caso, apesar da venda de ascendente a descendente por interposta pessoa restar caracterizada como fraude a lei, que receberia a sanção de nulidade; não se pode olvidar que “que toda vez que a ordem jurídica, para a hipótese de sanar violação de norma imperativa, refere-se a um resultado específico, este deverá preponderar sobre a nulidade”.[11]

A fraude à lei, como violação indireta, logicamente deve ter o mesmo tratamento que a violação direta. Para consequências iguais, sanções iguais. E foi isto o que o legislador de 2002 pensou em fazer quando atribuiu a nulidade como consequência na fraude à lei e na simulação; isto para “fugir” da confusão que grassava na doutrina, como resultado da má compreensão dos institutos, especialmente da fraude à lei. Foi matéria sempre mal tratada pela doutrina e jurisprudência nacionais.

No entanto, por desconhecer a verdadeira essência da fraude à lei, ao tratar da venda de ascendente a descendente sem o assentimento dos demais descendentes, atribuiu a sanção da anulabilidade quando a venda for feita diretamente; mantendo, portanto, a nulidade quando a venda se der por interposta pessoa (fraude à lei). Inverteram-se, apenas, os termos do problema que existia anteriormente.

No Código Civil de 1916, a venda direta era nula e a jurisprudência reputava anulável a venda indireta. Atualmente, a venda direta é anulável (com preclusão de dois anos; art. 179, CC). Trata-se de incoerência resultante da ignorância do legislador no trato dos institutos. Destarte, precisamos concluir que, de lege ferenda, que a sanção aplicável a venda de ascendente a descendente praticada como ato em fraude à lei deve ser a mesma prevista para a hipótese de violação direta a lei (art. 496, CC): anulabilidade, com preclusão de dois anos.


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